domingo, 6 de setembro de 2020

A má criada

A Lurdinhas de Benfica

Anda muito stressada

Apanhou o marido

Na cama c'a criada.

 

E logo sentenciou

Com sua voz altiva

Tens que largar a criada

Senão vais pagar IVA

 

E o marido largou

A desiludida criada

A família está primeiro

Ou não estivesse abençoada.

 

A Lurdinhas de Benfica

Às amigas não disse nada

Escolheu umas férias

E despediu a criada.

 

O marido contente

Com aquela decisão

Elogiou a Lurdinhas

E o seu coração.

 

E lá vão os dois

Em excursão a Jerusalém

Não há mal algum

Que não venha por bem.

 

Os dois peregrinos

Com o grupo excursionista

Tiraram uma foto

P'rá capa duma revista,

 

Que a criada desfolha

Barriguda e feliz

Dormi com aquele tipo

Mas foi Deus que quis.

 

 

José Carlos S. de Almeida

Lisboa, Maio de 2001

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Perder a cabeça para melhorar o comportamento sexual

A propósito de comportamentos egoístas e comportamentos altruístas e de como muitas
vezes, um comportamento objetivamente egoísta, pode ser subjetivamente altruísta e vice-versa, deparei com esta passagem no livro (clássico) de Richard Dawkins, O gene egoísta.

“Os louva-a-deus são grandes insetos carnívoros. Normalmente, alimentam-se de insetos menores, como as moscas, mas atacam praticamente tudo o que se move. Na época do acasalamento, o macho se arrasta com cautela na direção da fêmea, monta sobre ela e copula. Se tiver a oportunidade, a fêmea o come, começando por lhe arrancar a cabeça, quando o macho estiver se aproximando, logo que ele tiver montado nela, ou ainda depois que tiverem se separado. Para nós, pareceria mais sensato que ela esperasse a cópula se completar antes de começar a devorá-lo. Porém, a perda da cabeça não parece privar o restante do corpo do seu cadenciado movimento sexual. Na realidade, uma vez que a cabeça do inseto é a sede de alguns centros nervosos inibitórios, é possível que a fêmea melhore o desempenho sexual do macho ao lhe devorar a cabeça. Se assim for, isso seria um ganho secundário. O benefício primário é a boa refeição que ela obtém.” (Richard Dawkins, O gene egoísta, Companhia das Letras).

O autor, a seguir, relata o que classifica como sendo o "comportamento cobarde" dos pinguins-imperiais. Então, o que se passa é que se observou que eles permaneciam de pé, à beira da água, hesitando antes de mergulhar, temendo serem devorados pelas focas. Ora, bastaria que um deles mergulhasse para os outros poderem concluir se havia ali ou não focas. Como ninguém quer servir de cobaia, ninguém quer ser o herói altruísta, ficam todos à espera que algum, mais descuidado, dê o primeiro passo. Entretanto, se ninguém avançar, às vezes não hesitam em empurrar algum para verificarem se o perigo anda por perto. Isto já me lembra outra coisa, mas ficamos por aqui.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

A doença que vem do estrangeiro

(Susan Sontag - Nova Iorque, 1933-2004)
Susan Sontag  em A Doença como MetáforaA Sida e as Suas Metáforas (Quetzal, 2009) aborda as várias metáforas que se tem vindo a associar às doenças, em particular àquelas que, por más razões, acabaram por ganhar uma dimensão civilizacional. A obra, composta por aqueles dois ensaios à volta das várias e diversas narrativas onde as doenças se foram dizendo e descrevendo, relaciona, a dada altura, o fantasma da doença e o estrangeiro. O que já acontecera no passado com outras situações e noutros textos.
Alessandro Manzoni em Os Noivos (1827) relata o surto de peste no ducado de Milão em 1630, que é atribuído às tropas alemãs. Defoe, em O Diário do Ano da Peste (1722) descreve uma peste no ano de 1665 que teria origem na Holanda. Já a peste bubónica teria reaparecido em Londres na década de 1720 vinda de Marselha. Por outro lado, em Crime e Castigo de Dostoiévski, o personagem Raskolnikov sonha com a peste em termos paradigmáticos: "Sonhou que todo o mundo estava condenado a uma nova e estranha peste que chegara à Europa dos confins da Ásia". A Europa, conclui Sontag, vê-se a si mesma como uma zona colonizada por doenças vindas de fora, de lugares exóticos e pobres. A doença é, afinal, uma espécie de invasão, curiosamente trazida muitas vezes pelos soldados de regresso a casa como aconteceu aquando da Pneumónica (1918), embora estes já voltando após o fim da guerra. Mas, neste caso, também havia quem, erradamente, atribuísse a Espanha a sua origem e daí o seu outro nome: "gripe espanhola". No caso da sífilis, existiu e foi muito difundida a teoria de que se tratava duma doença do Novo Mundo trazida para o Velho Mundo pelos marinheiros de Colombo. Segundo Sontag, os primeiros escritos médicos sobre a sífilis "não deram crédito a tão duvidosa teoria". Aquela teoria sobre a origem da doença seria a explicação que melhor servia os intentos moralistas e os respetivos julgamentos sobre o comportamento dissoluto dos homens.
A guerra à doença e o seu cortejo de metáforas está também presente na atual pandemia: os hospitais da linha da frente que são descritos como aqueles que levam por diante o primeiro embate; os constantes apelos a que não se dê tréguas ao vírus ou para que não se baixe a guarda apesar do aliviar das medidas de confinamento, uma espécie de entrincheiramento. Susan Sontag chama a nossa atenção para essa relação da doença que nos invade a partir do estrangeiro. Nada mais atual, quando, na atual pandemia, se tenta associar a difusão do atual vírus à China. E pior do que isso, a uma intenção deliberada dos Chineses, ao serviço duma pretensão hegemónica que começaria a despertar.
O Ocidente é, deste modo, invadido pelas doenças, por agentes invisíveis que atacam um continente fraco, debilitado, anémico, com as suas defesas em baixo. Como se preparassem o caminho a outras invasões, vindas de fora, por gente tão maltrapilha quanto virulenta, infecciosa... E, por essa razão, não haverá quem falte a vir apelar à guerra ao vírus que vem de fora. Ou a cair na armadilha ilusória de que nos defenderemos no futuro, se erguermos muros (ou velhas fronteiras) e impedirmos os estrangeiros (os estranhos) de entrarem cá dentro e cá dentro se instalarem e aqui se hospedarem.

sábado, 25 de abril de 2020

O 25 de abril também pode ser uma história de amor

Nesse ano faria 15 anos, era uma idade crítica, se é que não são todas. Frequentava o Liceu de Caldas da Rainha, colonialmente denominado como Secção liceal do Liceu Nacional de Leiria, algo que não nos dizia nada na altura.
Funcionava, então, nos Pavilhões do Parque, uma construção já com alguns séculos e que se situava no aprazível parque da cidade. Nesse ano, ou melhor, nesses anos, existia um numeroso grupo de professores que se revelaria marcante na minha formação, como foi o caso do António Avelãs, meu professor de Filosofia e que foi presidente do SPGL e de quem sou amigo. Ou a esposa, Ermelinda. Ou o Vasco, também professor de Filosofia. Ou o Morais, de Educação Física, um gigante generoso.

Com as mudanças operadas com o 25 de Abril de 1974, a vida na escola transformou-se radicalmente, alterando a relação entre professores e alunos. Não tenho dúvidas em afirmar que foram os anos mais importantes para a minha formação política e cultural e aquilo que hoje sou é ainda devedor das experiências democráticas que na altura ocorreram na vida das escolas e na sua gestão e que nunca mais viriam a repetir-se, iniciando-se alguns anos depois, um processo de retrocesso a esse nível que nunca mais terminou.
Mas voltemos a 1974, precisamente a 16 de Março. Era um sábado e preparava-me com um grupo de colegas para irmos disputar um jogo de futebol de salão na Marinha Grande. Na cidade já se notava uma agitação anormal e quando, no fim do dia, regressámos, já sabíamos o que tinha acontecido: que um grupo de militares do RI5 (Regimento de Infantaria 5) de Caldas da Rainha, avançara rumo a Lisboa no pressuposto de que outras unidades militares tinham procedido da mesma maneira, convergindo, na capital, no derrube do governo de Marcello Caetano.
Contudo, tinham sido os únicos a sair do quartel e acabaram por regressar às Caldas onde acabariam por se render depois de cercado o seu quartel por forças leais ao regime fascista. A cidade estava inundada por sinistros agentes da PIDE. Os principais dirigentes dos militares insurrectos acabaram detidos e levados para Lisboa. Na segunda-feira seguinte, quando entrei na sala de aulas, a minha professora de Francês, na altura considerada entre os alunos como a professora mais bonita da escola, estava virada para a janela que dava para o parque.
Quando se virou para nós, depois de todos terem entrado, reparámos que tinha estado a chorar. O marido era um dos oficiais do RI5 que tinha sido preso.
A justeza das ideias também pode ceder à dor dos momentos e das situações. Tinha casado há pouco tempo, tinha um bebé de um ano e via-se agora numa situação de incerteza com o marido detido. Durante aqueles dias houve um pacto entre os alunos: todos nos esforçámos por portar bem, por colaborar nas aulas, por aprender francês, pois já bastava a preocupação e a tristeza que sentia. Era uma forma de mostrarmos a nossa solidariedade.
Da parte dos professores seus colegas também observámos essa solidariedade. Até porque havia mais uma ou duas professoras que estavam casadas com militares detidos na sequência do dia 16 de Março. Na altura, lembro-me de Marcello Caetano vir sossegar a população portuguesa, porque estava tudo sob controlo.
Não estava e passado pouco mais de um mês aconteceu o 25 de Abril.
Foi numa quinta-feira e recordo-me de, nessa manhã, entrar na sala de aula de francês, de manhã, com o jornal que tinha comprado. Devia ser o Diário de Lisboa, que era o jornal que eu via o meu vizinho do 1º andar ler.
Conversava muitas vezes com ele e emprestava-me livros “revolucionários” que eu lia avidamente, às escondidas. Ora, como ele tinha estado preso por razões políticas no forte de Peniche e isso só podia significar ele ser um homem de bem e o Diário de Lisboa só podia ser o jornal indicado. Era esse e o Notícias do Funchal.
Ora, eu tinha comprado nessa manhã o Diário de Lisboa e entrei na sala de aula com ele bem visível. A professora de Francês que estava na sala de aula apresentava-se, nessa manhã bem sorridente, acentuando os seus bonitos traços de jovem mulher.
Quando eu entrei, dirigiu-se a mim e deu-me um grande e inesperado abraço. Nunca pensei que fosse possível receber um abraço duma professora. Devo ter corado, mas compreendia perfeitamente a sua felicidade. De qualquer modo, o significado afetivo da revolução de Abril ficou plasmado nesse abraço: era a revolução que permitia que professores e alunos pudessem dar um abraço; a revolução significou, pois, para mim, um adolescente de 14 anos, igualdade e liberdade.
Passados poucos dias, a minha professora de Francês tinha o marido à espera na sala de professores. Um oficial fardado no liceu era um motivo de alarido, pois na altura os militares eram os verdadeiros heróis. E, aquele, por razões dobradas.
Vinha com a sua filha de um ano ao colo. Aproveitei para saudar a minha professora de Francês e cumprimentar o marido. Ah, e também espreitei o bebé, uma menina de olhos azuis muito bonita. Saía à mãe, mas os olhos eram do pai.
Durante muitos anos ficou-me na memória aquele abraço. Ou como a tristeza nunca é definitiva. Ou como as revoluções também se fazem em nome da felicidade.
Passados muitos anos, estava na Faculdade de Direito à noite onde me tinha licenciado, contei esta história a uma colega. Por acaso ela tinha olhos azuis e acabou por me confessar que a mãe tinha dado aulas no liceu das Caldas. E o pai tinha estado preso por participar no 16 de Março. Contei-lhe que os conhecia, que a conhecia daquele tempo, era bebé. Falei-lhe daqueles dias, daqueles anos. E daquele abraço.
Não sei se esta história do abraço dum aluno e duma professora a emocionou. Esta história, como outras daqueles anos irrepetíveis duma revolução que mobilizou generosamente um povo.

Acabámos por nos apaixonar e casar. Afinal, aquele abraço de 1974 acabou por perdurar no tempo. O nosso amor talvez tivesse nascido naquele abril distante. É que o 25 de Abril também pode ser uma história de amor.

Castelo Branco, Quinta da Garalheira, 25 de abril de 2020 (originalmente publicado, com algumas modificações, no jornal on line Tornado em 25 de abril de 2016).

segunda-feira, 6 de abril de 2020

O tempo dum olhar na marginal

A pouco e pouco esquecemo-nos dos pormenores dum rosto, das suas particularidades mais notáveis,  dignas de nota, dos sinais, mesmo os dos mais invulgares. O rosto torna-se um mapa confuso até se transformar num apressado caldo de sensações. É por isso que o apaixonado, na incandescência do seu amor mis recente, tem dificuldade em se lembrar do rosto do outro, quando à noite se esforça por recordá-lo, para que ele entre no seu sonho a seguir. Que irritante se torna termos ali o rosto do outro quase à mão de semear, como um nome na ponta da língua mas de que não conseguimos lembrar. O rosto do outro ganha quase a dimensão do fantasma, de algo nebuloso, mas etéreo. Porém, não esquecemos a profundidade de um olhar, o modo como olhar nos olha, a maneira como nos sentimos olhados, profanados, e no acabamos por ver através do olhar do outro, nos reconhecemos.
Jorge recorda o olhar intenso de Luísa, um dia à noite na marginal, cada um dentro do seu carro, parados nos semáforos, os dois carros à distância mínima, como bólides à espera da bandeirada da partida, acelerando nervosos, motores inquietos. Nesse momento sentiram ao vivo como o molhar pode hipnotizar os amantes, os pode tornar incapazes de qualquer gesto, hipnotizados, imobilizados no auge do fascínio. À maneira da serpente. Não estavam bem imóveis: estavam docemente paralisados pelo olhar de cada um, suspensos no tempo que se suspendera também. Nenhum deles tinha vontade de quebrar esse encantamento. Estátuas para a eternidade. Também é verdade que, naquele  momento, cumpriam uma parte do seu destino: o de, no momento em que se encontravam, apartarem-se por completo dos outros e das coisas e apenas celebrarem o seu espaço, o ambiente que laboriosamente, com muito cuidado, iam construindo. Como estátuas, apenas escutavam o bater feliz do coração. Apenas existiam um para o outro. Banalidades. E aquela mulher era o seu melhor cenário, de sempre. Naquele momento. Tomara ele tornar-se no justo jardim para a receber.



Para escutar enquanto se lê... Aqui.


domingo, 5 de abril de 2020

A origem civilizacional das doenças

"Os historiadores da época não tiveram dúvidas quanto à origem americana da sífilis. A partir de Pinzón e dos outros membros da tripulação que traziam consigo a doença, bem como dos cinco índios que vinham com Colombo, esta depressa chegou a Barcelona, onde ocorreu um primeiro grande surto no ano de 1493. Dessa cidade portuária alastrou à França e à Itália. Um ano depois, quando Carlos VIII de França (conhecido pelo Cabeça Gorda, pelas dimensões do seu crânio) invadiu a Itália e ocupou Nápoles, o exército trouxe consigo verdadeiras legiões de prostitutas e a sífilis alcançou proporções epidémicas.
Se a Europa sofreu com a sífilis do Novo Mundo, isso nada é comparado com aquilo que os indígenas americanos sofreram por causa dos europeus. Doenças como a varíola, o sarampo, a peste bubónica, a difteria, a gripe, a febre-amarela e o tifo em breve dizimaram as populações nativas e conduziram ao rápido desaparecimento de populações inteiras, incluindo os pacíficos e amáveis Tainos, que tão bem tinham recebido Colombo. Quando na sua segunda viagem este chegou ao Novo Mundo à frente de uma armada de dezassete navios, as suas tripulações foram de imediato atacadas pela doença. Em vez de cinco indígenas, a segunda expedição trouxe consigo quinhentos e cinquenta escravos, metade dos quais morreu pelo caminho e os restantes chegaram a Espanha doentes e moribundos. Só na ilha de Hispaniola, onde Colombo fundou a sua primeira colónia, a população, estimada em trezentos mil no ano de 1492, ficou reduzida a metade no espaço de quatro anos. Em 1508 sobreviviam sessenta mil, quatro anos mais tarde não era mais de vinte mil. Por meados do século XVI os Tainos tinham desaparecido por completo.
Neste primeiro contacto, entre o Velho e o Novo Mundo, foi o comércio das doenças que assinalou o intercâmbio colombiano."
James Reston Jr., Os Cães de Deus, Lisboa, Bertrand Editora, 2008, 414 pp.

domingo, 1 de março de 2020

Uma reflexão sobre a morte e o morrer: do sentido da morte à morte com sentido




Índice
1. Da ameaça da morte à sua reflexão
2. O sentido da morte reflete o que pensamos da vida; a morte também dá sentido à vida
3. Esconjurar a angústia da morte: a morte é sempre a morte do outro; evitar a palavra ‘morte’
4. Morte e vida são um par indissociável; a morte é um acontecimento natural
5. A espectacularização da morte não nos ajuda a compreendê-la
6. A morte também é um fenómeno social
7. A nossa sociedade e a nossa cultura não querem saber da morte
8. As dificuldades de entender a morte no contexto de um humanismo sem transcendência e de um mundo secularizado
9. Do medo da morte à morte boa — eutanásia e o suicídio assistido


1. A morte enquanto rutura
A morte convoca à sua volta pensamentos contraditórios: tanto a consideramos, na sua radical distinção, como um acontecimento estranho à nossa vida exuberante, um mistério insondável, como, ao mesmo tempo, constatamos que a morte é um acontecimento natural, cuja única explicação para ela nos acontecer reside no simples facto de se estar vivo. Apesar de todas as dúvidas e contradições que lhe estão associadas, bem como das muitas perspetivas que se exprimem a seu propósito, uma coisa é evidente para lá de todas as incertezas: a morte é certa e irrecusável. Não pode, pois, constituir um território interdito à nossa reflexão.
Não são só a sua evidência e certeza que obrigam o homem a reflectir e tomar posição sobre a morte. A sua irrupção súbita e chocante leva qualquer um, independentemente da sua formação e dos seus conhecimentos, a refletir, mais cedo ou mais tarde, ligeira ou profundamente, a propósito deste acontecimento. Sobre a sua brutalidade abrupta. É porque amamos a vida e a vivemos intensa e apaixonadamente que a morte, e a sua aparente falta de sentido, nos interpela. A morte, mais do que qualquer outro evento, representa uma ruptura no viver, o desfazer do nosso presente e dos nossos projetos, um corte na continuidade do tempo que nos era evidente a todo o momento. Uma ruptura radical de tal maneira que a morte é a ruptura. Esta originalidade do acontecimento espicaça ainda mais a nossa reflexão.
No entanto, pensar a morte nem por isso afasta os seus sinais incómodos e ameaçadores. A morte, pela sua brutalidade inesperada, instaura um momento de dissolução e ruptura, causadora de profunda comoção e consternação à escala da comunidade que assim se sente, igualmente, ameaçada. A morte é a manifestação violenta do caos, uma ameaça muito real ao mundo organizado dos vivos através da sua força desestruturante. Mas a violência da morte não se deve medir apenas pela violência do acontecimento. A realidade dramática da morte, o drama, perdura para além do seu acontecimento. A dolorosa experiência da morte acompanha os que cá ficam lembrando-lhes, a todo o momento, que a sua existência é precária, que ninguém está suficientemente seguro, que ninguém é imune. A morte faz lembrar aos vivos a sua condição de sobreviventes. Sempre que alguém morre agudiza-se a consciência de que nós somos aqueles que restaram, que se vão reduzindo as hipóteses de nos salvarmos, que a morte caminha ainda mais apressada na nossa direção ou que nós avançamos inelutavelmente para os seus mortíferos braços. Nesse momento instala-se em nós uma convicção maior de que nada valemos, que vivemos sob uma constante ameaça que se aproxima cada vez mais rapidamente.
Quando refletimos sobre a morte, também estamos a pensar na nossa morte. Apesar de sermos levados a reflectir sobre a morte quando ou a propósito da morte de alguém, nunca conseguimos afastar totalmente a ensurdecedora presença silenciosa da nossa morte, que convive com a representação inconsciente da nossa imortalidade ou a convicção do seu eterno adiamento, ilusões necessárias para amortecer a evidência racional do nosso fim. Por isto tudo, não conseguimos nunca afastar a inquietação e a perturbação que a morte sempre provoca e provocará em nós. Refletimos sobre a morte, mas em silêncio, mexendo os lábios duma forma quase impercetível, rezamos a propósito da nossa. Contudo, sem que a palavra morte se oiça, isto é, se solte, não vá a palavra realizar-se. Ainda para mais quando a nossa vida decorre de uma forma exuberante e entusiasmada, ao ponto de parecer que a morte não existe, não pode existir, não tem lugar.


2. O sentido da morte reflete o que pensamos da vida; a morte também dá sentido à vida
Para a Filosofia, a morte, na medida em que é uma rutura, é o Nada que ameaça o Ser. E trata-se de um nada com um estatuto especial, pois a morte vem carregada de densidade ontológica — a morte não é um mero vazio.
O problema da morte entronca na magna e perene questão do sentido da vida. Por isso, ao reflectirmos sobre a eutanásia e o suicídio assistido colocamo-nos no seio duma questão central do pensamento filosófico e da história das ideias e cuja centralidade não decorre duma disciplinar arrumação dos conceitos, mas por se tratar duma interrogação que sempre inquietou o homem de todas as épocas. Ao ponto de podermos dizer que o homem só é homem, só cumpre e realiza a sua humanidade essencial, na medida em que se interroga sobre o sentido da sua existência. Ao interrogarmo-nos sobre a morte, interrogamos também a vida e o próprio homem. Quando este pensa a morte, é o sentido da vida, da sua vida, que é arrastado na sua reflexão. Ora, discorrer sobre a eutanásia e o suicídio assistido leva-nos a pensar a morte e o sentido da vida nas actuais condições do nosso mundo artificial, maravilhoso, virtual. Como também somos levados a deixar de refletir sobre a vida em abstracto para questionarmos o próprio viver concreto.
O mundo atual, a vertiginosa mudança civilizacional tem também as suas repercussões sobre a morte e o morrer e o que pensamos sobre isso. A nossa realidade dominada que está pelas tecnologias de informação e comunicação, a globalização do mundo e das culturas e o encolhimento da realidade, tudo isso são fatores que terão que ter consequências na situação do homem e do mundo. Em particular, como veremos mais adiante, foi o extraordinário desenvolvimento da medicina que acabou por nos forçar a uma nova reflexão sobre quando se morre e como se morre. Ao mesmo tempo que a medicina evoluía, que a esperança média de vida aumentava, que as técnicas de suporte e apoio à vida se desenvolviam, aumentaram os nossos problemas em relação ao fim da vida. O que significa que, também temos, pois, que resistir à tentação de pensar a morte fora do seu contexto concreto e esse contexto é, para lá da própria vida, a sociedade ocidental e ocidentalizada, enquadradas pelas novas estruturas tecnocientíficas. A morte que acontece, ocorre no seio dum viver completamente diferente do modo de viver (e de morrer) dos nossos pais e dos nossos avós. Em menos de uma geração tudo se tem alterado radicalmente. O mundo avançou demasiado rápido e tememos ter ficado para trás.
E entre nós? Ainda não sabemos, com rigor, como é que se morre em Portugal; mas temos uma ideia de como se vive e com base neste dado, prevemos que os últimos momentos da vida das pessoas sejam vividos de um modo que deve deixar muito a desejar. Vive-se mal, pelo que não se deve morrer contrariando o modo tão precário de se ir vivendo e sobrevivendo.
A discussão sobre a eutanásia e os últimos momentos da nossa existência lança um repto à nossa própria cultura e civilização, aos seus princípios e valores, e também, não o esqueçamos nunca, ao modo como esses valores se concretizam, ou não! O que também não deixa de ser significativo e revelador, porque o modo como entende a morte reflete a sua conceção da vida. A vida não tem sentido sem a morte. Ou melhor, o sentido que esta vida tem, deve-o à morte que não se ausentou do nosso viver.
Perante a brutalidade da morte, o homem é conduzido a interrogar-se sobre a sua vida. O reconhecimento mais cruel dum fim e a consciência aguda da finitude colocam o homem perante a sua fragilidade e questionam-no sobre a sua posição no cosmos. Os opositores da eutanásia consideram que este período de interrogação do paciente pode constituir uma fase de aprofundamento e enriquecimento espiritual, que pode ser levado por diante em diálogo com aqueles que lhe são próximos e que a eutanásia viria bloquear. Contudo, este argumento pode ser devolvido à procedência, já que, podendo decidir o momento da sua morte, o paciente terá melhores condições para estabelecer esse diálogo, sem a pressão duma morte que se avizinha avassaladoramente e ocorre independentemente da sua vontade e desejo. Ao programar a sua morte e o momento em que esta poderá ocorrer, evitando entrar num período de degradação física e psicológica ou mesmo de inconsciência, sempre poderá reunir à sua volta aqueles que mais ama, dando as últimas instruções e recomendações ou resolvendo ainda algum problema mais íntimo e privado que teria ficado por esclarecer ou resolver, pois a proximidade dos últimos dias pode constituir ainda a ocasião propícia para a sua abordagem. A eutanásia e o suicídio assistido não bloqueiam a experiência duma reflexão sobre o sentido da vida. As decisões por aquelas opções é que serão certamente precedidas por um debate individual ou em grupo, interior ou não, sobre o sentido da vida e do sofrimento infausto.
Estranheza, medo, acontecimento natural. O que é inegável é que a morte está ligada à vida. E rapidamente se verifica que vida e morte se iluminam mutuamente. A nossa visão da morte depende do sentido que atribuímos à vida. Mas também é inegável que o acontecimento brutal e irrecusável da morte condiciona o sentido que atribuímos à vida e aos vivos. Este mútuo condicionamento não nos pode, contudo, fazer esquecer que é da vida que partimos. De tal modo é assim que é o modo como vivemos a vida que nos prepara ou não para compreender e aceitar a morte, tornando-a mais ou menos dolorosa. É uma vida repleta de experiências, uma vida realizadora dos nossos desejos, vivida como uma aventura aberta e reveladora da nossa disponibilidade para os outros que permite atingir a satisfação do Imperador Adriano, descrita por Marguerite YOURCENAR que, já velho, afirmava serenamente que já podia entrar na morte de olhos bem abertos. Contudo, o rosto morto é sempre representado com os olhos fechados. Se os olhos do cadáver estiverem abertos, haverá sempre alguém que se apressará a fechá-los. Para não se aperceber do caminho a fazer? Ou para não nos olharmos nos olhos. É que a morte transforma a nossa vida em destino, lembrava André Malraux.
Apesar de nos situarmos, desde já, num campo de profunda radicalidade, o problema da morte remete-nos para questões mais perturbantes e que se prendem com o sentido da existência humana diante do mal e do sofrimento. De um modo mais íntimo, o homem pergunta por que razão é ele submetido à prova do sofrimento ao mesmo tempo que o mundo transcendente, que dava sentido ao sofrimento e à morte humanos, se vai esboroando. Será que devemos reconhecer que, afinal, não há sentido e a realidade é absurda? Ora, admitindo o absurdo da vida podemos acabar por tornar a existência humana ainda mais sofredora.
Contudo, não se pretende apenas compreender a morte em si mesma. A morte é essencial para que o homem compreenda a vida. A morte é a fronteira da vida e está constantemente presente em tudo o que vive e é vivo. O homem, ao mesmo tempo que vive, vai também morrendo. Segundo HEIDEGGER, o homem, enquanto ser-para-a-morte vai vivendo todos os dias a pequena morte. Dessa omnipresença da morte resulta para o homem a radical consciência da sua finitude. Talvez por ser insuportável a consciência de um fim certo, exista no homem um sentimento inconsciente de que é imortal. Por muitas vias, sempre o homem quis fugir à morte, sonhando e procurando poções mágicas que lhe assegurassem a imortalidade[1]. No mesmo sentido, outros procuravam o elixir da juventude, na tentativa desesperada de se manter eternamente jovens[2]. No entanto, a imortalidade tem os seus inconvenientes. Para ORTEGA Y GASSET, “a morte é o que comprime e intensifica a vida”[3]. A duração limitada da vida obriga-nos a saborear melhor o que a própria vida nos dá, bem como a fazer o melhor possível, conscientes de que não existirão muitas possibilidades de se repetirem certas oportunidades que nos são oferecidas. A morte vem comprimir a nossa vida. Se esta fosse infinita, o sentido dos nossos gestos e dos nossos actos acabava por se perder nesse mare magnum duma vida sem limites, que acabava por absorver tudo o que nós fizéssemos. A morte comprime a nossa existência, vem dar urgência e significado a tudo o que fazemos. Acaba por dar brilho à nossa existência. A sua luz não se perde numa existência infinita. Por isso, não é necessariamente má a existência da morte.


3. Esconjurar a angústia da morte: a morte é sempre a morte do outro; evitar a palavra ‘morte’
            À volta da morte produzem-se afirmações e alinham-se posições que, na maioria dos casos, são contraditórias entre si. A morte suscita posições, tal como sentimentos, contraditórios e isso reflecte bem o modo como o tema nos atinge e encontra completamente desarmados.
A certeza da morte é acompanhada pela tensão, por vezes angustiante, acerca da incerteza do morrer: sendo absolutamente certo que, um dia, havemos de morrer, ninguém sabe quando é que tal ocorrerá e em que condições. A morte é o acontecimento mais certo e seguro na vida do homem, no entanto, é aquele sobre o qual se reúnem mais incertezas. Neste sentido, um fundamental paradoxo envolve desde logo o fenómeno da morte: a certeza absoluta do seu acontecimento e a incerteza do seu acontecer, enquanto processo com inevitáveis mas desconhecidas consequências. Mors certa, hora incerta, afirma o provérbio latino.
Essa incerteza pode tornar-se mais angustiante quando, apesar de sabermos que havemos de um dia morrer, não estamos preparados para a morte. Estranha e tragicamente, não estamos, com efeito, preparados, para a morte. O convívio diário com a morte não é suficiente para nos preparar para a morte. É certo que a única relação que mantemos é com a morte dos outros, pois a nossa morte é-nos invisível e incompreensível. Felizmente para nós representamos a nossa morte como um acontecimento distante, constantemente diferido. Mesmo que a esperança seja a última coisa a morrer, é verdade que sabemos que a esperança acabará por ser derradeiramente vencida. Durante alguns períodos da nossa vida, julgávamo-nos imortais, porém a morte do outro está-nos ainda marcada pela distância, há sempre uma distância opaca que nos salvaguarda e preserva a nossa tranquilidade. A morte do outro, mesmo de um familiar, atinge-nos sempre indirectamente, é da esfera da vizinhança, toca-nos temporariamente e o luto encarrega-se de superar. A morte do outro é sempre uma outra morte. Contudo, a única morte que conhecemos é essa morte a que assistimos. E quando assistimos a essa morte, na maioria dos casos, trata-se de uma morte envolta num cerimonial, numa representação que a mascara e suaviza. Quase nunca vemos a morte, mas o espectáculo da morte: a morte do outro aparece sob a forma dum acontecimento que já passou. A morte que vemos é a que já aconteceu, a que já foi. A morte é sempre a representação da morte e essa dramatização instala uma distância temporal que é uma separação temporal. A distância dramática e temporal anula a sua presença, suaviza a morte, cuja presença se repete, isto é, re-presenta, mas por isso mesmo está deslocada e desfocada em relação ao acontecimento original. O morto é um já-morto, aquele que já morreu, que já não é. De certa maneira, este pequeno desfasamento é essencial porque cria uma distância que nos protege, que suaviza a sua repercussão em nós. Mas, ao mesmo tempo, esse desfasamento que nos coloca fora da sua órbita impede-nos de aceder a uma compreensão mais essencial do fenómeno. O outro que morreu torna-se ainda mais opaco e a sua morte menos compreensível. A sua presença inanimada aparece já composta e retocada. Contudo, o objectivo de se guardar uma boa imagem do ente que parte não é o único objectivo do trabalho do cangalheiro. A agência funerária tratou de reconstituir a serenidade do morto para que não choque tanto os vivos, nem os choque perante um processo pelo qual terão irremediavelmente de passar.
A morte é um tema que evitamos abordar, em que a própria palavra é temida devido ao seu poder evocativo e realizante. Como se a simples pronúncia da palavra fosse suficiente para convocar a morte para ao pé de nós e por isso preferimos mantê-la longe, não falando dela como se ela não existisse. Por isso, existe uma áurea de contenção que rodeia a morte, evita-se falar da morte como se a simples evocação da palavra, reunindo em si poderes tão misteriosos quanto poderosos, fosse suficiente para aproximar esse acontecimento real do convívio despreocupado dos vivos. Há constantemente um manto de silêncio a rodear a morte e as doenças fatais, nomeadamente os diagnósticos de situações que podem conduzir à morte. É verdade que fazer com que o doente ganhe consciência da evolução da sua situação pode, em muitos casos, agravar o seu estado depressivo e a sua ansiedade. Mas não é disso que se trata. A não evocação da morte através da palavra é uma forma de a esconjurar ou, pelo menos, de a afastar do nosso convívio. “As coisas de que nunca se fala são um pouco como se não existissem” [4]. Para além duma concepção mágica acerca do poder da palavra e da sua capacidade realizante através da sua evocação, o que está aqui presente é o temor dos vivos perante a irrupção brutal de tão trágico acontecimento e que pode acontecer com a simples (a)presentação / representação da morte através do pronunciar da palavra. Quando alguém pronuncia a palavra logo se teme que ela se aproxime de nós e fazemos tudo para esconjurar o perigo que fica por perto, instalado na ressonância que perdura na palavra evocada. Segundo FREUD, as pessoas ficam doentes quando se começam a questionar sobre o sentido da vida e da morte[5]. Há, deste modo, uma dimensão patológica associada à aproximação em relação à morte. O medo da morte tem a ver com o facto de este acontecimento provar que o nosso mundo está constantemente ameaçado pela possibilidade do caos irromper subitamente nas nossas vidas. A presença da morte vêm-nos lembrar não só da nossa finitude, como também da fragilidade da nossa realidade periclitante.


4. Morte e vida são um par indissociável; a morte é um acontecimento natural
Facilmente encaramos a morte como algo que decorre naturalmente da própria vida. Tudo o que vive deverá morrer um dia. Não há vida sem a morte e esta faz parte do ciclo universal da própria vida. Tudo o que é vivo e nos rodeia tem a morte como fim. Séneca, numa das cartas a Lucilius, onde justifica o suicídio, afirma que todos os dias nós morremos[6]. Quem vive, por exemplo, no campo, assiste diariamente à morte dos animais e das plantas como condição da própria sobrevivência e renovação dos seres vivos. As crianças, nesse ambiente, assistem desde muito cedo ao espectáculo da morte. Como também observam o nascimento dos cachorros e dos vitelos. Eles facilmente convivem com o nascimento e a morte e se habituam a incluí-los num mesmo ciclo natural e quotidiano. Mas à medida que nos aproximamos da nossa morte, à medida que representamos essa nossa possibilidade, retiramo-la desse ciclo natural e recusamos a aceitá-la. A nossa morte é anti-natural e escandaliza, porque não aprendemos a morrer, nunca ninguém nos ensinou a enfrentar a morte, porque toda a lógica da nossa vida e da organização da nossas sociedades é um constante festival que idolatra a vida e o prazer (como o corpo jovem e equilibrado) que oculta a luta constante para vencer a morte, como se houvesse uma secreta e íntima convicção de que a poderíamos chegar a vencer definitiva e derradeiramente. A morte possui, assim, esse carácter duplo: enquanto momento de um processo natural e, portanto, natural, e acontecimento ilógico e, desse modo, perfeitamente anti-natural. Deste modo, fomenta ainda mais a nossa perplexidade perante um fenómeno que é em si mesmo perspectivado contraditoriamente.
A representação mais divulgada e partilhada sobre a morte afirma que a morte é um fenómeno natural, que a morte faz parte da vida. Contudo, essa naturalização da morte não impede que a pensemos, ao mesmo tempo, como um acontecimento que vem contrariar e contradizer o fluxo exuberante da vida, não lhe retira o seu carácter muitas vezes inesperado e não extingue o sentimento de revolta que se manifesta sempre que a morte atinge alguém que nos é familiar ou próximo.
“Morrer é a própria condição da existência”, afirma JANKÉLÉVITCH. Para este autor a morte é um não-sentido que dá sentido à vida, um não-sentido que dá um sentido negando este sentido[7]. Assim sendo, a morte tem um sentido, não se pode considerar em absoluto como não-sentido. Pode ser um sentido escandaloso, chocante, mas não deixa por isso de ser um determinado sentido. Só que é um sentido envolto em mistério, é o próprio mistério mais radical sem ser segredo nenhum, e é, por essa razão, a interpelação suprema. Aquele que se descobre no preciso instante em que o ser se nega, se apaga. Mas se podemos fazer alguma aproximação reflectida em relação à morte, fazemo-lo sempre a partir da vida, a partir da segurança que a vida é. A morte não descola da vida, não se entende em si mesma, sem essa relação/posição fundamental. Do mesmo modo, a vida não se entende sem essa referência a um fim absoluto que é a morte. Se a morte não existisse a nossa compreensão da vida seria completamente diferente. Imaginemos uma vida sem esse fim que é a morte. Como seria tão diferente a nossa vida se soubéssemos que éramos imortais! Em relação a muitas das nossas experiências, sabendo que são irrepetíveis porque existe um fim que nos impede de acedermos de novo a elas, não será que é por essa irrepetibilidade que a morte estabelece que as vivemos intensamente? Se soubéssemos que poderiam ser repetidas, entregar-nos-íamos de corpo e alma a essas experiências? Guardaríamos delas uma memória tão incandescente? Seriam tão grandiosas ao ponto de aquecerem a nossa memória e a nossa existência? A morte comprime a nossa vida, retira-lhe essa dilatação própria da imortalidade que convida ao relaxamento e à inércia. A existência dum fim para a nossa vida, apressa-nos e põe-nos alerta. Ao invés, a ausência de um fim, torna-nos seres relapsos, preguiçosos, indiferentes.
A realidade à nossa volta, plena de vida, desenvolve-se à custa da morte de todos os elementos que cumprem o ciclo da sua existência. Existe uma dialéctica evidente na relação vida e morte, na medida em que, do mesmo modo que se morre porque se vive, também se vive porque se morre. Quem vive, por exemplo, no campo, assiste diariamente à morte dos animais e das plantas como condição da própria sobrevivência e renovação dos seres vivos. As crianças, nesse ambiente, assistem desde muito cedo ao espectáculo da morte. Como também assistem ao nascimento dos cachorros e dos vitelos. Eles facilmente convivem com o nascimento e a morte e se habituam a incluí-los num mesmo ciclo natural e quotidiano. Mas à medida que nos aproximamos da nossa morte, à medida que representamos essa nossa possibilidade, retiramo-la desse ciclo natural e recusamos aceitá-la.


5. A espectacularização da morte não nos ajuda a compreendê-la
Todos os dias os meios de comunicação invadem as nossas casas com notícias e imagens de violência e morte ocorrendo em todos os pontos do mundo e no nosso país, bem perto de nós. Não há dia que passe sem que nós não sejamos bombardeados e agredidos com essas imagens brutais. Convive-se, assim, diariamente, com o espectáculo da morte. Mas este convívio com a morte e os seus vários rostos é montado sob o signo da sua espectacularização, modelo apelativo que, aliás, tende a dominar a própria lógica informativa como forma de assegurar audiências, vencer concorrentes e viabilizar comercialmente as empresas da comunicação. Apesar duma esteticização da morte (como do mal) os telespectadores queixam-se duma agressão absurda, porque acaba por fomentar junto dos mais novos e mais desprevenidos comportamentos também violentos por natural atitude mimética. Mas, pior do que isso, o espectáculo diário da violência e da morte tem um efeito anestesiante junto do público. A banalização daquelas trágicas realidades acaba por embotar a nossa consciência crítica. Porém, existe um outro efeito lateral, raramente mencionado: é que este encontro regular com a morte não nos tem fornecido um melhor conhecimento da sua realidade. As mortes que se multiplicam por esse mundo fora e os mortos que vemos espalhados nas ruas ou nos campos de batalha improvisados pela lógica terrorista tornaram a morte mais irreal, reduzida à condição de imagem, sem densidade. A morte a que nós assistimos é demasiado brutal para ser verdade e só se explica integrada na panóplia das imagens montadas, reduzida ao resultado de uns meros efeitos especiais. A morte nas notícias aproxima-se cada vez mais da maquilhagem da morte que nos é dada pelo cinema. A informação-espetáculo que nos domina retira realidade à morte e remete-a para o domínio da ficção. Nós deixamos de pensar na morte para nos deliciarmos morbidamente com a sua encenação. A morte passa a ser apenas uma realidade ficcionada, em última instância, um produto da imaginação.
A invasão dos media com cenas de morte nos mais variados cenários é um filme diário. Desde a simples notícia da morte de alguém conhecido publicamente, aos teatros de guerra, aos actos de grupos terroristas, genocídios e chacinas, ou intervenções de indivíduos isolados e perfeitamente transtornados que desatam a disparar em público sobre toda a gente, tudo isso não nos remete para a mesma brutal realidade que é a morte. Daí se falar duma certa banalização da morte, do mesmo modo, ou no mesmo processo em que ocorre a banalização do mal. Mas este processo de banalização da morte não significa que esta se torne mais familiar. A sua espectacularização não resultou numa aproximação das pessoas à realidade da morte: apenas se alteraram os filtros com que nos é servida. Aliás, os meios de comunicação raramente dedicam o seu espaço a uma reflexão mais pausada sobre a morte. Neste sentido, comungam do espírito do nosso tempo que evita os temas desagradáveis na medida em que atingem o nosso bem-estar, transtornam o nosso conforto do serão. Não avançamos para uma reflexão racional sobre a morte, antes esta morte banalizada e repetida é oferecida sob a forma de espectáculo, integrando um programa de variedades. Com esta morte ilusória podemo-nos deleitar, “uma vez que, afinal, a encenação que nos é oferecida desvia a nossa atenção da nossa própria finitude”[8]. O espectáculo da morte não nos leva a nos enfrentarmos a nos próprios, mas antes, esvaziada de sentido e radicalidade, conduz-nos ao prazer da dissolução do sujeito na contemplação da panóplia de imagens com que é servida.
Contudo, a morte-espetáculo também nos faz descansar, porque se distancia de nós. A morte dos outros é cada vez mais uma outra morte, que não nos pertence nem pertence ao nosso mundo. E ainda, suspiraremos nós que, como costuma dizer o povo, enquanto assistimos à morte dos outros é sinal de que estamos vivos.

6. A morte também é um fenómeno social
Os primeiros monumentos da história do homem são monumentos funerários. A existência remota destes monumentos megalíticos, antas ou dólmenes, prova pelo menos duas coisas: primeiro, que a morte constitui um acontecimento que sempre preocupou o homem e ao qual ele dedicou um especial cuidado desde os primórdios da Humanidade; segundo, constata-se que a morte é um acontecimento individual, mas também social, que a comunidade enquadra e tenta resolver. Por outro lado, assistimos também, a partir daí, à ritualização da morte, o que acontece em todas as culturas e revela que a sociedade, desde muito cedo, teve de se preparar para conviver e ultrapassar o acontecimento da morte. A morte, pela sua brutalidade inesperada, instaura um momento de dissolução e ruptura, causadora de profunda comoção e consternação à escala da comunidade que assim se sente ameaçada. A morte é a irrupção violenta do caos, uma ameaça ao mundo organizado dos vivos. Mas a violência da morte não se deve medir apenas pela violência do acontecimento. O que há de mais dramático na morte é o que perdura para além do acontecimento. A dolorosa experiência da morte acompanha os que cá ficam lembrando-lhes, a todo o momento, que a nossa existência é precária, que ninguém está suficientemente seguro, que ninguém é imune. A morte faz lembrar aos vivos a sua condição de sobreviventes. Sempre que alguém morre agudiza-se a consciência de que nós somos aqueles que restaram, que se vão reduzindo as hipóteses de nos salvarmos, que a morte caminha ainda mais apressada na nossa direcção. Nesse momento instala-se em nós uma convicção maior de que nada valemos, que vivemos sob uma constante ameaça que se aproxima.
            Apesar da morte ocorrer num plano estritamente individual, não nos podemos esquecer que a morte é também um fenómeno social, não só porque existem repercussões naqueles que gravitam à volta daquele que finda, como a própria sociedade também se organizou em função da morte, possui e vive determinados ritos funerários. O que no entanto, não deixa de ser interessante, é verificarmos que todos estes ritos se desenvolvem para nos assegurarmos de que o espaço dos mortos está perfeitamente delimitado e separado do mundo dos vivos, criando condições favoráveis à travessia / viagem que os mortos têm que fazer até encontrarem a sua última morada. Um extenso mar ou um caudaloso rio separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Os mortos ou as suas almas deverão fazer essa derradeira viagem. Lembremo-nos, a propósito, da travessia que os mortos realizavam nas descrições do Antigo Egipto e das barcas que os transportavam nos autos de Gil Vicente ou. Dizemos que se pretende que os mortos descansem em paz, mas é fácil constatar que é o sono dos vivos que nos preocupa, em última instância. As nossas sociedades, desde o homem das sociedades ditas primitivas, sempre tiveram a preocupação no enterro dos seus mortos. E percebe-se que assim seja. Nada de mais inseguro e intranquilo que a confusão entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. A nossa existência não descansaria se a qualquer momento nos pudéssemos cruzar com um zombie, sermos tocados pela sua figura rarefeita, sentirmos a sua presença invisível mas perturbante vagueando pela nossa casa. A nossa sociedade cuida da morte dos mortos a pensar nos vivos. Por essa razão a morte possui essa irrecusável dimensão social. E é impossível reflectir sobre a morte sem termos em conta que ela representa uma ruptura no tecido social e familiar, que provoca vazios, dores e sofrimentos nos outros. E que estes terão de viver e manifestar plenamente essa dor e sofrimento, como forma de ultrapassar o trauma do desaparecimento do familiar ou do amigo. O luto é um processo necessário porque, afinal, todos nós temos de continuar as nossas vidas. Mas, para isso, é necessário e vital expurgar completamente a dor, verbalizando-a ou representando-a, isto é, deitar cá para fora tudo o que nos faz doer de forma a que possamos re-nascer após a morte dos outros, re-viver apesar desse acontecimento traumático, que tem de ser superado. A sociedade não pode, por essa razão, deixar de organizar os rituais de morte, sob pena de esta não ser plenamente afastada ou digerida.
A morte afeta a sociedade tal como esta se vê na contingência de organizar a morte na medida do possível. A mobilização que existe à volta da morte e a actividade dos profissionais da morte repetem o cuidado que os nossos antepassados da pré-história manifestavam quando se tratava de enterrar os mortos, deixando no local os objectos mais importantes do morto ou deixando mesmo comida. Revelavam, desse modo, que a morte não era um fim absoluto, mas uma passagem, uma viagem especial para a qual era preciso estar preparado e que exigia dos vivos tratar dos preparativos.


7. A nossa sociedade e a nossa cultura não querem saber da morte
João Lobo Antunes recorda-nos que “hoje tudo se faz para abafar a discussão da morte” [Inquietação Interminável, p. 124]. As nossas sociedades contemporâneas, marcadas pelo hedonismo e pelo individualismo, não querem saber da morte, esconjuram-na como tema maldito e infeccioso. Este ‘não quer saber’ não deve ser interpretado como indiferença. Não quer saber quer dizer que não gosta que lhe falem disso, evita os temas desagradáveis que, de certa maneira, arrefeçam a sua euforia anestesiante. As inúmeras campanhas publicitárias e de marketing alardeiam-nos com a juventude do corpo e a busca incessante do prazer. A sociedade actual não aprecia quem a lembre que somos finitos, deterioráveis, perecíveis. Por isso, desagrada-lhe tudo o que revela a nossa degradação, como a doença ou a velhice. Chegar a velho já não representa um acumular de sabedoria, mas antes um acumular de problemas, chatices, rugas, flacidez, incontinência. A nossa cultura actual é, mais que no passado, crítica com o facto de os idosos se tornarem improdutivos, representarem um peso morto, como que acabados. Porém, a tudo isso se deve acrescentar o facto inelutável de terem ficado feios, acusadores. Repugnam.
Uma sociedade onde imperam princípios de beleza e do corpo são, bem como do prazer e da felicidade, vê muito mal a irrupção descontrolada da doença e da morte, sobretudo da doença que conduz à desfiguração do doente e à sua lenta e penosa agonia. Apesar de existir também um certo fascínio pelo horrível e pelo bizarro, que nos obriga a não desviar o olhar, esse fascínio apenas se exerce através da mediação da imagem. Ao vivo, o corpo ferido e pustulento causa repulsa, cheira mal e ameaça-nos. Do mesmo modo, o princípio do prazer convive mal com o desconforto que a doença e o doente nos provoca.
Daí que todo o nosso esforço cultural vá no sentido de afastar a morte, mantê-la à distância, esquecê-la. A todo o custo empurramos a morte que está diante de nós e louvamos e elogiamos o esforço que se traduz nessa direcção. No limite, sonhamos com uma imortalidade desejada, mas o simples esboço desse sonho é a marca irrecusável da nossa finitude irremediável, pelo que evitamos de todas as maneiras a morte. Para escapar a esta insuportável e absurda consciência da nossa finitude, alimentamos o nosso sonho antigo duma juventude que se eterniza ou duma imortalidade merecida. E, inconscientemente, acreditamos ou queremos acreditar que somos imortais ou quase imortais. Já não se trata do efeito dum milagroso elixir; a tecnociência médica vem em socorro dessa crença e ambição e tem vindo a alargar o nosso prazo de validade. E por isso, também não nos preparamos para ela, tentando evitar ou suavizar o sofrimento e a dor que a acompanha. Tentamos fazer com que a certeza da nossa finitude se esvaneça no alvoroço dos dias e dos nossos projectos. Sabemos que um dia morreremos, mas vivemos de maneira a que isso esteja esquecido, recalcado. A morte é um assunto desagradável e quem o aborda também pode ficar contaminado por essa putrefação latente. Daquilo que não se fala é como se não existisse. Ao mentir-se ao doente sobre a sua situação não se poupa apenas o doente, mas tenta-se também não incomodar os que o rodeiam com o assunto desagradável duma morte próxima. Há uma motivação para a mentira, afirma Ariès [p. 55]. Preparamo-nos para a vida, mas não nos preparamos para a morte, como se esta abordagem acelerasse o processo da sua vinda ou visita. Não nos preparamos para a morte porque evitamo-la sob todas as formas. A sua simples abordagem é plena de perigos. Philippe Ariès classifica a situação como um “processo de escamoteamento” [Philippe ARIÈS, Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média, pp. 56] que se realiza de diversas maneiras, nomeadamente esvaziando os ritos da morte da sua carga emocional. Esta contraria o princípio do prazer que regula muitas das nossas relações e caracteriza a nossa sociedade. A fealdade da morte ou do corpo degradado convidam à expulsão da morte e da doença, ao seu exorcismo. O escamotear os rituais da morte poupa os vivos. É vital que poucos se apercebam da passagem da morte. Por essa razão, o luto também terá tendência a desaparecer: o luto não é tão carregado, a roupa aproxima-se cada vez mais da que usamos todos os dias. A morte deixa um rasto progressivamente apagável. A nossa boa consciência repete: o que interessa são os sentimentos, não a forma como se manifestam publicamente [“Um desgosto demasiado visível não inspira piedade, mas repugnância; é um sintoma de desarranjo mental ou de má educação; é mórbido.”, Ariès, p. 57].
A nossa sociedade não quer saber da morte e foge da morte como o Diabo foge da cruz. O hedonismo contemporâneo dá-se mal com um assunto tão inoportuno. Por outro lado, o nosso individualismo revela-se duma forma esclarecida na abordagem da morte que é um fenómeno eminentemente social: esta, mais do que qualquer outra realidade, só acontece aos outros. Porquê preocupar-me se só acontece aos outros? Quando me acontecer a mim também já não será possível preocupar-me... Definitivamente, a morte não nos preocupa! Mas esta posição não é autêntica. Uma postura de denegação [ver dicionário de PONTALIS] da morte descreve mais um esforço e o sentido dum movimento que o resultado a que se chega. Denegar a morte significa a tentativa vã de esconjurar uma realidade que nos possui.
Uma outra forma de denegar a morte é tentar vencê-la. Uma das outras ilusões contemporâneas que demonstra que a nossa cultura convive mal com a morte, com o fim. Vencer a morte... Mas alguma vez se consegue, de facto, vencer a morte? Não haverá nesta expressão uma certa mistificação própria dos tempos que vivemos, duma fé exagerada nas capacidades da técnica e da ciência. Não é aquela expressão um mero slogan publicitário próprio da necessidade de ilusão que conforta quem se vê a braços com a fatalidade da morte? Vencer a morte só pode ser uma ilusão quando sabemos que a morte é um acontecimento absolutamente certo, que não poderá ser adiado. É tão ilusório quanto a ideia de vencer a morte e tornar-se imortal sempre animou, desde os tempos mais recuados, o homem. Todos sabemos e conhecemos as múltiplas histórias de aventuras e desventuras em torno da fabricação e da posse dum milagroso elixir que tornaria o homem eternamente jovem. E não vive ele hoje com essa ilusão, quando multiplica as intervenções estéticas sobre o seu corpo, passa horas cuidando do corpo em ginásios e spa’s, multiplica os produtos para eliminar os sinais serôdios da velhice. Mas tudo isso se revela desajustado em última análise. E, assim, multiplicam-se os sinais de desespero perante uma missão antecipadamente votada ao malogro.


8. As dificuldades de entender a morte no contexto de um humanismo sem transcendência e de um mundo secularizado
            O facto de as ciências terem evoluído nos últimos séculos e, ainda mais, nas últimas décadas, levou a que o homem tivesse eliminado progressivamente o papel de Deus na sua vida e, consequentemente, na sua morte. Este novo humanismo, um humanismo sem transcendência e que alguns classificam como humanismo materialista[9] também foi acompanhado da eliminação de inúmeros ritos de morte que existiam para a paz dos vivos[10]. A dor da morte era amortecida e superada pelos rituais fúnebres e pelo luto. Perdida a nossa confiança nesses rituais de enterro e cremação, por exemplo,[11] bem como abandonando-se os costumes do luto, aconteceu que esses rituais perderam o seu significado emocional[12] e lenitivo. Tudo isto conduziu a uma vivência mais desesperada da morte. A ilusão de imortalidade do homem moderno constrói-se à custa da invenção de novos mitos que alimentam essa ilusão num mundo de morte, dor e sofrimento sem sentido profundo. O fim da vida, entregue ao universo médico, é mais frio e desumano[13]. Num humanismo sem transcendência é o próprio sentido da existência que se limita, que reduz o seu âmbito: a existência humana acaba por se circunscrever aos seus limites vitais e caracterizados biologicamente[14].
Para muitos autores, a vida humana despida da sua referência ao transcendente perde sentido e significação, fica mais pobre; deixa de ser mistério para se tornar quando muito num mero problema. A erosão da fé religiosa também contribui para uma mudança na perceção da morte. E isso acontece num contexto duma moral elaborada pelo liberalismo a partir de pressupostos utilitaristas, “baseada no princípio da utilidade ou da maior felicidade, em que se releva o prazer e a ausência da dor fora de toda a crença transcendente[15]. O drama do homem consiste na sua inabilidade ou fraqueza para construir outro imaginário colectivo que traga significação para a realidade social e, nomeadamente, para as conexões entre a vida e a morte. O homem reduz o seu horizonte e acaba por ficar confinado à pura mundaneidade[16], a um mundo vazio e a uma existência flat. A morte fica, assim, despida de qualquer esperança, pelo que se apresenta com um caráter ainda mais brutal.


9. Do medo da morte à morte boa — eutanásia e o suicídio assistido
O medo da morte liga-se, fundamentalmente, à incerteza acerca do modo como se vai morrer. Aliás, a morte é absolutamente certa, apesar de ocorrer num terreno incerto. Esta certeza é de igual intensidade à incerteza da forma como esse acontecimento irá ocorrer. E é essa incerteza que gera medo e angústia. Até mais angústia que medo, por desconhecimento do próprio objecto que é alvo das nossas preocupações[17]. Facilmente se imaginam modos horríveis de morrer e ninguém está certo que nenhum deles possa acontecer. Forma-se, assim, uma noção de má morte que é aquela que provoca sofrimento no moribundo e nos que o rodeiam. Tal como se cria uma noção de boa morte que seria aquela que ocorresse de uma forma rápida e indolor[18]. Se possível, ocorrendo durante o sono. Diz-se até que aquele que morre durante o sono acaba por não sentir nada. Há, deste modo, a par da incerteza e do medo acerca do modo como se morre, um conjunto de representações acerca da boa e da má morte. Quando uma mulher grávida se prepara para ter um filho é vulgar desejar-se que ela tenha «uma hora pequenina». Com essa expressão manifesta-se o desejo de que o parto ocorra de uma forma breve, de maneira a que as dores do parto também aconteçam de uma forma rápida. Quanto mais rápido for o parto menor será o sofrimento da futura mamã. Pretende-se, pois, que as dores, passem depressa, que se sofra o menos possível. Em relação à morte, acontece um fenómeno análogo. Todos nós sabemos o que entendemos por uma morte boa: aquela que ocorre durante o sono, por exemplo, sem que o sujeito se aperceba da sua própria morte ou então a que acontece rapidamente para que sejam breves as dores e o sofrimento. A serenidade que muitas vezes é possível adivinhar no rosto do morto corresponde, para o senso comum, ao facto de o sujeito ter deixado o mundo dos vivos de uma forma não dolorosa, inconsciente se possível, sem se ter apercebido de nada. Lamentamos sempre a morte de alguém, mas serve-nos de consolo saber que aquele que se findou, pelo menos, não sofreu. Esta concepção vulgar daquilo que é uma morte boa é posta em causa pela situação actual dos tratamentos médicos e hospitalares. Respondendo ao esforço, em princípio deontologicamente correcto, de prolongar a vida através de todos os meios, a morte, nomeadamente a que ocorre num ambiente hospitalar que é cada vez mais frequente (dois terços dos franceses morrem numa instituição hospitalar), deixou de poder ser um acontecimento rápido, para se transformar num processo lento, doloroso e, por vezes, agonizante. Chegamos assim a um paradoxo: a medicina contraria, através da sua obstinação terapêutica, aquilo que o senso comum considera ser uma morte boa. Ao prolongar-se artificialmente ou artificiosamente a vida do paciente, acaba-se também por prolongar o seu sofrimento. O doente deixa de ser levado pela morte para arrastar consigo a própria morte. E esta, cada vez mais técnica por ocorrer a partir desse prolongamento artificial da vida, é cada vez mais o resultado de uma decisão médica.
A eutanásia e o suicídio constituiriam uma forma de antecipação da morte, iludindo o horizonte extremamente lato das horríveis ou serenas possibilidades que podem rodear a sua ocorrência. Através daqueles procedimentos, seria o próprio sujeito que escolheria a forma de morrer, evitando as formas mais horríveis ou degradantes.

José Carlos S. de Almeida
(revisto em 1 de Março de 2020)


[1] Veja-se a saga em busca do Santo Graal.
[2] Oscar WILDE, O Retrato de Dorian Gray.
[3] Cit. in A. CABELLO MOHEDANO et al., ELPPE, pp. 20-21, [7].
[4] ABIVEN, 64.
[5] Cf. Luc FERRY, p. 11.
[6] Cit. in La MARNE, p. 98.
[7] JANKÉLÉVITCH, p. 40.
[8] Louis Vincent THOMAS, Morte e poder, p. 67.
[9] Paula LA MARNE, 101.
[10] Sobre a função dos ritos associados à morte, enquanto ritos de passagem, pelo que amortecem a dor a que acompanha a morte e o luto: os ritos associados à morte enquanto ritos de passagem “(...) para além de permitirem a concretização do luto, facultam uma certa racionalização do acontecimento como, por exemplo, a verbalização de que não passa de momento de transição para outro tipo de existência.” (Wilson Correia de ABREU, Saúde, doença e diversidade cultural, pp. 44-45.
[11] Morte e Luto Através das Culturas, p. 16.
[12] Ibid.
[13] Cf. Paula LA MARNE, 103-104. Ver também a perspectiva de André COMTE-SPONVILLE e a noção de «desespero-beatitude»: a sabedoria não consiste na procura do sentido, mas numa consciência dominada por uma «desilusão-serena».
[14] Paula LA MARNE, 103, [155].
[15] António Teixeira FERNANDES, «Modernidade e Eutanásia», in Para uma Sociologia da Cultura, p. 139.
[16] Op. cit., p. 140.
[17] Neste sentido, o medo tem um objecto definido, ao contrário da angústia que é um sentimento dirigido para um objecto mal definido.
[18] Mas há também quem tema a morte repentina, por ser aquela onde o indivíduo não tem tempo de preparar as coisas de forma a despedir-se da vida sem assuntos por resolver.